O que não estava na literatura que não ganhou a realidade?
Essa foi uma das perguntas que dirigi ao Lucas Havoc, que organizou a recente antologia New Weird para a Editora Cyberus. O debate que levantei foi uma fala bastante interessante dele no podcast da mesma sobre Ficção Científica Brasileira, e que a literatura brasileira teria, em algum grau, uma dose melancólica e como isso poderia respingar em movimentos e gêneros literários mais afirmativos que não tem muito disso, como Amazofuturismo e Afrofuturismo. Amazofuturismo e Afrofuturismo podem combinar com essa melancolia? Perceba, virando os olhos para a tradição literária brasileira que não foram os sociólogos, antropólogos, historiadores que a iniciaram os estudos sobre essas mesmas áreas. Não tínhamos pessoas com esse tipo de repertório até metade do século passado e quem ocupou esse vácuo por todo esse tempo foram os escritores. Foi através da literatura que começou a se conhecer o país, isso já dizia o crítico literário Antonio Candido. Teixeira e Sousa e Joaquim Manoel de Macedo não podem ser chamados de literatura com "L" maiúscula. Não tinham um projeto de país, de dizer "O que é o Brasil?". Quem começa isso é José de Alencar e Machado de Assis, autores condutores de um projeto literário que foi possível e, como consequência, o início da construção desse país. A literatura brasileira, com eles, começa uma tradição que tinha uma simples missão: desenhar o contorno da nacionalidade. Os maiores e os melhores, aqueles que ficaram, se voltaram para a pergunta: o que queremos ser como nação? Podemos dividir esse movimento como empenho nacional (narrativas que foram do Romantismo até o Pré-Modernismo), engajamento social (Primeira e Segunda Fase do Modernismo) e experimentação linguística (Terceira Fase do Modernismo). Todos os livros e autores que ficaram, na qual nós somos herdeiros foram os que buscaram a construção de algo bom e sólido partiram de seus pensamentos para contribuir com o todo, seja pela análise romântica (José de Alencar e Castro Alves), conservadora (Machado de Assis e Joaquim Nabuco), liberal (Nelson Rodrigues e José Guilherme Merquior), marxista (Jorge Amado e Oswald de Andrade) e os politicamente inclassificáveis (Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa). Todos eles de alguma forma, apontaram para um norte do que o Brasil era, do que o Brasil estava se tornando, e mais ainda, do que o Brasil deveria se tornar. Um exemplo disso é que as pessoas podem ter uma noção do que é a questão do COVID-19, das vacinas e do isolamento e como isso atinge a população mais carente lendo Capitães da Areia, muito embora o livro não seja focado nisso. Como exemplo, podemos virar a atenção para uma obra pré-modernista específica, a pergunta “O que é o Brasil?” para Euclides da Cunha pode ser visto pelos três nomes que batizam as três partes do livro: A Terra, O Homem e A Luta. Se apropriando da concepção naturalista do historiador francês Hippolyte Taine, que concebia a história através do três fatores: meio, raça e momento, Euclides nos diz que, se você conhece a Terra, se você conversa com o Homem, a terceira parte inexiste. Ele aponta que, a falta de comunicação entre os "mestiços neurastênicos do litoral" e o "Hércules-Quasímodo" sertanejo leva a um conflito inevitável. Ele praticante sugere um diálogo entre o Brasil do Litoral que vê alienado o que vem da Europa (a cultura estruturante a moralizante) e da África (a mão de obra escrava) e esquece o que é interiorano. Olhando também na poesia, já que ela também ficou in judice para alguns perante meu pensamento, podemos lembrar que Olavo Bilac foi autor da letra do Hino à Bandeira; Castro Alves escreveu uma verdadeira epopéia antiescravagista em O Navio Negreiro e Cruz e Sousa também denunciou os males da escravidão Crianças Negras e Dor negra, um poeta considerado bastante violento pela utilização de neologismos em tempos de parnasianismo. Esses são apenas alguns exemplos para mostrar que a vida social do Brasil poderia ser vista em sua literatura. Um exemplo disso foi, na coleção Documentos Brasileiros organizada por Gilberto Freyre a pedido de José Olympio que se impressionou com o sucesso do José Lins do Rego (que mostrou em seus livros Ciclo do Açúcar a queda e decadência dos antigos engenhos), Rachel de Queiróz e José Américo de Almeida e percebeu uma linha mercadológica que era o desejo da capital conhecer o interior, e, o primeiro volume dessa coleção é Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Depois dessa que foi a segunda fase do Modernismo, a terceira fase compreende Guimarães Rosa, Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto que experimentam na língua, buscando recriar o falar mas mantendo a prosa intimista da geração anterior, abraçando ainda mais causas sociais e misturando o erudito com o popular. Não há nada que não exista na realidade da nação que não veio antes na literatura. Tanto que existe aquele negócio de: "Ele previu isso" ou "Ele previu aquilo". O próprio Júlio Verne falava que, o que um homem imagina o outro é capaz de realizar. Observando em perspectiva (dentro deste texto e fora dele), o presente autor acredita que a literatura não é só a abertura de portais e um reflexo da realidade do que somos e do que queremos ser. A mesma literatura melancólica presente em Iracema de José de Alencar, Úrsula de Maria Firmina dos Reis, Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, Capitães de Areia de Jorge Amado, Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto e Vidas Secas de Graciliano Ramos ainda mostram, em meio a tantas partes lúgubres, traços de esperança. Outro gênero literário que formou a sociedade e perguntou “O que é o Brasil?” foi a crônica. Fernando Sabino, Rubem Braga, Otto Lara Resende, Millôr Fernandes, Nelson Rodrigues e outros começaram a traduzir aos leitores o que estavam na frente de seus olhos, relatando que a partir dos anos 50 a primeira vez que a população urbana ultrapassou a rural e com isso, outras estéticas literárias apareceram com força, como o Romance Policial de Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza e a Literatura Fantástica (ou realismo mágico) de Murilo Rubião, José J. Veiga e Moacyr Scliar. A construção de algo sólido leva tempo, custa suor e lágrimas que essas pessoas tiveram e que hoje em dia é impensável. A esperança que os autores anteriores tinham (o fim da escravidão, o contato do interior do Brasil com a costa do Brasil, a diminuição da desigualdade) hoje eu não consigo ver nos contemporâneos. As rachaduras que sempre existiam na sociedade e que eram consertadas ao longo do tempo hoje é exigido em um imediatismo oriundo desse tempo virtual. Hoje vivemos em um tempo hiperespecializado. Se você é fã de terror, você vai encontrar uma editora que publica terror; se você é fã de ficção científica, você vai encontrar uma editora que publica ficção científica; se você é fã de terror e ficção científica nordestina, você vai encontrar uma editora que publica terror e ficção científica nordestina. As vozes que antes não tinham espaço hoje encontram e sobrevivem deles, de seu nicho, de sua bolha. Virando-se para o início do texto, e analisando a tradição da literatura nacional, acredito Amazofuturismo e Afrofuturismo não são estilos que combinem com esse ar melancólico, ou com uma narrativa melancólica e no final a esperança. Acredito que esses estilos no Brasil deveriam se virar para narrativas felizes, imaginando um país que realmente tenha superado esses problemas.
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